Por Rosana Puga de Moraes Martinez > Presidente da ADONE - MS
Segundo a OMS*, doença rara é aquela que acomete 65 pessoas em cada grupo de 100 mil indivíduos; ou seja, menos de uma a cada mil pessoas. 80% das doenças raras têm origem genética. As doenças raras são geralmente crônicas, progressivas, incapacitantes e potencialmente fatais. No Brasil, estima-se que 13 milhões de pessoas tenha uma doença rara. Há 30 anos, as doenças raras são a segunda maior causa de mortalidade infantil no Brasil. As doenças raras ainda não têm cura; mas tem tratamentos destinados a aliviar e retardar os sintomas.
A OMS* já catalogou mais de 6 mil doenças raras. Se, por um lado, essa quantidade nos favorece em números, mostrando que não somos assim tão raros; por outro, a variedade também reflete algumas necessidades diferentes, que podem fragmentar nossas lutas. Mas as grandes demandas são comuns a todas: diagnóstico precoce, triagem neonatal, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas que regulem o tratamento multiprofissional, capacitação profissional, centros de referência e competência regionalizados, banco de dados epidemiológicos, entre outras.
No início, receber um diagnóstico de doença rara equivalia a uma sentença de morte prematura ou iminente. Mas o avanço crescente da ciência e das novas tecnologias vêm mudando essa realidade e, com isso, novas demandas vão se apresentando.
Patologias como a Esclerose Lateral Amiotrófica, Doença de Machado-Joseph e as Distrofias Musculares vem surpreendendo com pacientes cada vez mais longevos e com qualidade de vida, apesar da severidade dos sintomas.
Para melhor descrever a jornada da pessoa com doença rara e sua família, vamos usar como exemplo a Distrofia Muscular de Duchenne (DMD), uma das doenças raras com maior incidência no Brasil, que acomete 1 a cada 3.500 meninos. A DMD é uma patologia que provoca fraqueza generalizada e irreversível de toda a musculatura, evoluindo para insuficiência cardíaca e respiratória, as principais causas de óbito na DMD.
O diagnóstico de DMD ainda pode demorar entre 3 e 10 anos no Brasil. Já no fim da adolescência esses meninos começam a precisar de ajuda de terceiros para as atividades mais básicas (higiene, alimentação, uso do sanitário, deslocamentos, administração de medicamentos, etc) e, com o passar do tempo, essa necessidade de assistência passa a ser diuturna.
No Brasil, o serviço particular de cuidadores 24h custa, em média, R$10.000,00/mês. Inviável até mesmo para uma família de classe média, que já arca com o alto custo do tratamento.
As famílias acabam “elegendo” um cuidador que, ao longo do tempo, acaba desempenhando um papel decisivo na assistência à saúde, incluindo conhecimentos médicos sobre a pessoa cuidada, além de apoio organizacional e psicológico no tratamento. Com isso, o paciente pode estudar, se capacitar e trabalhar, tornando-se produtivo, gerando renda e pagando impostos, ao invés de onerar os sistemas de saúde e assistência social. Nesse sentido, esse “cuidado” é o alicerce que sustenta nossos sistemas públicos. Apesar disso, é exercido em sua esmagadora maioria por um membro da família de forma não remunerada e invisível.
Levantamento feito na Austrália, em 2015 estimou o valor anual fornecido pelos cuidadores familiares/informais, só para aqueles que sofrem de doença mental, em 13,2 bilhões de dólares australianos - quase o dobro do que o governo gastava em serviços de saúde mental. Só na Europa, há mais de 100 milhões de cuidadores fornecendo 80% dos cuidados a pessoas idosas, com doenças crônicas ou raras e com deficiências severas. No Brasil, os estudos estatísticos são pouquíssimos. Um deles, de 2013, realizado em São Paulo, demonstrou que os custos adicionais para a família de pessoa idosa e/ou com deficiência que requer cuidados variaram de 2 a 14 vezes o salário mínimo nacional, dependendo da severidade dos sintomas.
Por aqui raros trabalhos acadêmicos apontam o gênero como 2º fator determinante da relação de cuidado, já que no imaginário popular, cuidar é atividade doméstica e feminina; assim, a maioria das cuidadoras são mulheres, o que torna o cuidado também uma questão de gênero. 78% dos homens abandonam o lar quando nasce uma criança com doença rara, tornando-se a mãe cuidadora e provedora principal. 63% dos cuidadores morrem antes da pessoa cuidada, em decorrência da sobrecarga física e emocional, que já se manifestam a partir do 2º ano de cuidado. Estudos já observam aumento no número de suicídio entre cuidadores familiares. Apesar desses números, os cuidadores informais/familiares são ignorados por muitos governos. São cidadãos sem proteção social, salário, previdência, nem folga ou férias. E, ao longo do tempo, acabam tornando-se – eles próprios – dependentes da sociedade.
Sem o cuidado, o paciente com DMD e outras doenças raras está sujeito a intercorrências e internações hospitalares prolongadas. A diária de um leito de UTI com equipe multidisciplinar especializada e recursos de suporte de vida varia entre 3 e 75 mil reais. São recursos SUS, provenientes de impostos de toda sociedade.
A Política Pública de Cuidados (também denominados por lá como Assistentes Pessoais) já existe nos países nórdicos desde a década de 80 e no Reino Unido – em especial na Inglaterra - vem sendo aperfeiçoada desde 2007. Portugal iniciou em 2020 a construção de seu modelo, atrelado ao conceito de Vida Independente, que seria uma espécie de “república” para pacientes cujos cuidadores envelheceram, ou faleceram antes deles, e já não há ninguém para assisti-los.
A Política Pública de Cuidadores Informais (Assistentes Pessoais) que estamos propondo para o Brasil é baseada nesses modelos. E, por nossas dimensões territoriais e diversidade, a exemplo do formato proposto para os Centros de Referência em Doenças Raras pela portaria 199/2014, poderiam ser credenciadas Entidades ou Empresas – a partir de um caderno de encargos – para dispensarem o serviço.
A Política Pública de Cuidadores Informais é a resposta a essa nova e crescente demanda dos pacientes com doenças raras, onde ganham todos os atores envolvidos: o paciente, com qualidade e expectativa de vida; os familiares cuidadores, com produtividade e cidadania; os profissionais da “saúde do cuidado”, com geração de emprego e renda; e toda a sociedade, com a desoneração dos sistemas de saúde e assistência social.
* OMS - Organização Mundial de Saúde
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Saiba um pouco mais sobre Rosana Martinez.
Colocação atual
- Técnica da Subsecretaria de Estado de Políticas Públicas para Mulheres - SPPM de Mato Grosso do Sul
- Presidente Fundadora da ADONE* MS – Associação de Doenças Neuromusculares de Mato Grosso do Sul – desde 2005.
*Associada ADB
Histórico
1) Superior Completo: UNIDERP – Universidade para o Desenvolvimento do
Estado e da Região do Pantanal
Curso de Licenciatura Plena em Letras
Concluído em agosto de 2003
2) Pós-Graduação: UEMS-Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Gestão Pública - Concluído em 2011
3) Agente Social em Acessibilidade, certificada pela AVAPE/SP
4) MBA: FIA/USP - Planejamento e Gestão para Associações do 3º Setor
Concluído em 2021
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